Quando“A Vigilante do Amanhã” (2017) foi lançado, os holofotes de Hollywood se voltaram a um dos mais polêmicos casos de whitewashing da atualidade. O termo é usado para quando um artista branco é escalado para interpretar um personagem de outra etnia. Felizmente, parece que gradativamente estamos mudando para melhor, pois esta é a primeira vez que um grande filme estadunidense de super-heróis tem protagonistas e antagonistas asiáticos. De fato, lançamentos dos estúdios Marvel sempre deixam o público intrigado e, no mínimo, com altas expectativas. Esse foi o caso de “Shang-Chi e a lenda dos dez anéis”, que apesar de ter sido considerado por alguns um fracasso antes mesmo de ser lançado, agora veio a provar o contrário.
Na história acompanhamos Shang-Chi (Simu Liu) como filho de Wenwu (Tony Leung), o líder da organização dos Dez Anéis por séculos graças à mítica arma que carrega, e que lhe dá poderes mágicos de combate e imortalidade. Criado como um assassino desde a infância, Shang-Chi fugiu para os Estados Unidos, onde adotou o nome Shaun, e a carreira simples de manobrista em São Francisco, trabalhando ao lado de sua melhor amiga Katy (Awkwafina). Entre baixas ambições e noites de karaokê, o protagonista é atacado por um grupo de assassinos enviados por seu pai, e ele é forçado a confrontar seu passado.
Shang-Chi não é um filme tradicional sobre o bem contra o mal, na verdade, propõe algumas desconstruções, a começar pela organização dos dez anéis: agora entendemos mais sobre o seu histórico e objetivos. Contudo, a principal proposta é explorar o trauma que marcou e afetou diretamente a vida do protagonista, seu pai, sua irmã e seus planos futuros. A narrativa aposta em uma dinâmica familiar, mesclando com o drama e o humor, denotando uma boa estrutura feita no roteiro a fim de reinterpretar algumas passagens que haviam sido apresentadas anteriormente neste universo cinematográfico. Entretanto, essa experiência é marcada por pontos altos e baixos: um excelente trabalho com a dinâmica da obra desde a introdução, com cenas bem coreografadas e aproveitando ao máximo o potencial da cidade, mas também a dificuldade do diretor em integrar, no ato final, ação e drama.
O enredo conta com um ótimo desenvolvimento por conta própria, sem precisar se sustentar em outros eventos do universo da Marvel, exceto, claro, quando é necessário fazer uma retomada de alguns acontecimentos. Dessa forma, o estúdio fez um bom trabalho no processo de introdução dos novos personagens, por se tratar de um filme sobre origens. Nesse sentido, o ator Simu Liu nos apresenta uma atuação competente tanto na ação quanto no drama, com diálogos perspicazes que contribuem positivamente para o ritmo da trama. No entanto, durante o desenvolvimento, alguns pontos podem causar estranheza no público, como o envolvimento repentino de Katy. A personagem - que desconhecia o passado do melhor amigo até então - em seu arco final tem uma rápida integração com a história, promovendo ações que, diante do tamanho da ameaça proposta, evidenciam a necessidade de maior atenção do roteiro em trabalhar esse crescimento gradativamente.
É válido destacar também a alternância de coadjuvantes durante partes da trama. Todos eles possuem, de fato, camadas dramáticas que interessam o espectador, ajudando na construção do ritmo da narrativa e da empatia com o público. Contudo, alguns personagens mereciam mais atenção por conter uma carga emocional profunda, entretanto, acabam ficando perdidos na história. A irmã de Shang-Chi, interpretada por Meng'er Zhang, por exemplo, tem grande envolvimento afetivo com o pai e um passado extremamente interessante a ser explorado, mas não é bem aproveitada. Nesse sentido, a atriz conta apenas com alguns momentos de destaque, como suas cenas de ação bem desenvolvidas, mas é deixada de lado na grande luta final, que prometia ser a resolução do drama no núcleo familiar do qual ela faz parte.
A qualidade do trabalho gráfico e a beleza dos cenários também são qualidades valiosas do longa, aproveitando muito bem a cultura chinesa, com a fórmula de sucesso do estúdio que evita os clichês e estereótipos asiáticos, proporcionando ao público duas horas de muita diversão e emoção. Assim, “Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis” é uma surpresa satisfatória para quem ainda não foi apresentado a este herói que merece ser conhecido por mais gente, sempre mantendo o alto nível de aventura e teor épico que resulta em uma história original ao trazer elementos diferentes do que estamos acostumados, enquanto mantém as referências que fizeram do MCU um grande sucesso de audiência.
Nota do Crítico: 3.0/5.0 (Bom)