Há um momento na vida de todo filho em que ele precisa sair para o mundo e seguir seu caminho sozinho, ‘andar com as próprias pernas’. Essa proposição se aplica ao novo filme da saga Rocky/Creed: “Creed III”, primeiro longa que não conta com a presença marcante de Sylvester Stallone, criador da franquia. Entretanto, essa escolha cumpre um papel importante ao dar espaço para que os novos personagens sejam explorados e se desenvolvam, saindo da sombra confortável que Rocky Balboa lhes proporcionava. A terceira obra é um grande ponto de virada que não ousa mexer na fórmula de sucesso estabelecida desde 1976 — o que não é necessariamente ruim. Apesar dessa convenção, a narrativa segue consistente e enérgica.
Creed III é o recomeço após os eventos de Creed II. Adonis (Michael B. Jordan) está em um momento de sua carreira em que se aposentou dos ringues, decidindo focar em seu relacionamento com Bianca (Tessa Thompson) e a filha, Amara (Mila Davis-Kent). O futuro da família é promissor e agora é Adonis quem assume a função de treinador para novos boxeadores, entre eles, o prodígio da academia que comanda, o jovem Felix Chávez (Jose Benavidez). Entretanto, o passado retorna para Adonis à medida em que seu amigo de infância, Damian (Jonathan Majors), aparece depois de anos na prisão para acertar questões inacabadas entre eles.
Nesse sentido, a chegada de Damian dá a Creed III a oportunidade de finalmente reestruturar o olhar da franquia com um viés diferente sobre legado, que fora trabalhado até então. Após oito filmes, essa temática já foi demasiadamente explorada e, consequentemente, esgotada. Por conta disso, insistir nela poderia limitar as possíveis abordagens da nova jornada de Adonis Creed. Dessa forma, o foco é direcionado de modo a analisar outras camadas do personagem de Michael B. Jordan, que não foram trabalhadas anteriormente, em especial situações pregressas das quais tentou ignorar e esconder - que, nesse filme, não são mais necessariamente ligadas à seu pai - e os problemas motivados por essa tentativa frustrada de escape.
É certo que, como todo filme da franquia, a narrativa culmina no antagonista trocando socos com o protagonista no ringue. Porém, a química e o cuidado em desenvolver a complexa relação entre os dois personagens é tão instigante, oferecendo um peso emocional que dá a Jonathan Majors a chance de construir um personagem no qual o público se importa - diferente dos demais antagonistas de filmes anteriores - ao passo em que desperta pena e temor equitativamente. Ademais, a dupla preenche as cenas em uma performance arrebatadora que espelha em tela anos do fim de uma amizade mal resolvida, apenas com olhares.
Contudo, um ponto negativo que não pode ser ignorado está justamente na dinâmica entre os protagonistas: a falta de respostas plausíveis para as problemáticas propostas. A primeira parte do filme se torna interessante conforme a história apresenta ao espectador esses questionamentos, que chegam a fazer analogias pertinentes com as adversidades do sistema carcerário dos EUA, por exemplo. Todavia, a forma rasa com que as dúvidas são trabalhadas na segunda parte do longa, não são merecedoras da coragem de tê-las feito. No fim das contas, soa ao público como se a produção apenas optasse por seguir em frente com a narrativa, satisfeita em repetir o que já deu certo previamente.
No que diz respeito a relacionamentos, a dinâmica que segue sendo desenvolvida de forma poderosa desde Creed I é entre Jordan e Tessa Thompson, como Bianca, ganhando ainda mais contornos dramáticos com a chegada de Amara, filha do casal, agora já crescida, adicionando dilemas morais para a narrativa geral e para o próprio protagonista, evidenciando como o passado de Adonis implica em seu contexto familiar atual.
Quanto à direção, motivo de preocupação quando Creed III foi anunciado – já que estaria encabeçado por um diretor estreante –, Michael B. Jordan é perspicaz ao construir uma atmosfera envolvente e de antecipação, que culmina em um embate-espetáculo emocionante. Dito isso, as cenas de luta dos personagens são intensas e violentas. A câmera mostra detalhes nunca antes priorizados em filmes da saga, ou de boxe no geral, que passeiam entre o hiperrealismo e a licença poética, rendendo a melhor cena do longa. - mérito das referências externas trazidas por B. Jordan, que dão um respiro ao gênero - apesar de alguns problemas com o CGI, que não atrapalham a experiência.
Sem medo de arriscar algumas abordagens diferentes das pré estabelecidas por Sylvester Stallone, abrindo mão de marcas registradas da franquia sem deixar de homenageá-la a todo momento, o longa mostra que ainda há história para contar, com potencial suficiente para caminhar com as próprias pernas sem a dependência da sombra conveniente que Rocky oferecia — tanto que o ilustre personagem é citado apenas uma vez. Assim, Creed III ecoa como uma subversão de quase todas as regras pré estabelecidas em Rocky: Um Lutador (1976).A última cena do longa transmite um sentimento de desfecho de uma jornada que ao mesmo tempo está aberta para outro round. Dito isso, é notório que Adonis Creed é um personagem muito bem estabelecido na franquia por conta de seu passado, mas até quando a história iniciada por seu pai, Apollo Creed, servirá como força motriz para carregar seu legado adiante?
Nota do Crítico: 4.5/5.0 (Excelente)