“Meu caminho leva ao deserto.” - Paul Atreides.
Lançado em 1965, Duna é um livro peculiar, no bom sentido da palavra. Inspirando muito do que entendemos como ficção científica hoje em dia, o autor Frank Herbert criou uma narrativa literária com uma herança tão expressiva que até a trilogia original de Star Wars foi influenciada pela saga. Nesse sentido, retornando ao fato citado anteriormente sobre a peculiaridade dessa criação, é interessante observar a capacidade do autor em condensar todos os temas (religião, imperialismo, ecologia, colonialismo,espiritualidade, diversidade cultural, etc) sustentando-se no equilíbrio. A proposta do livro baseia-se na construção perfeita entre o mundo apresentado somado a uma história introspectiva da clássica jornada do herói que, na realidade, foi bastante diferente à época. Diante de uma obra que tem uma das mais complicadas mitologias da história da ficção científica, soava quase impossível - ouso dizer - que uma adaptação para o cinema contemplasse tal complexidade. Entretanto, em meio ao retorno gradual do público ao cinema, “Duna”, dirigido por Denis Villeneuve, consegue ser um épico extremamente pessoal.
Paul Atreides (Timothée Chalamet) é filho e herdeiro do distinto duque Leto Atreides (Oscar Isaac), cuja família acaba de receber ordens do imperador para assumir o lucrativo governo do planeta deserto Arrakis, ou “Duna”, uma terra de areia e especiarias. É tarefa da Casa Atreides apaziguar o povo indígena de Arrakis, os Fremen, assim como manter a exploração comercial do mineral no planeta. Os mestres anteriores, os Harkonnen, liderados por seu barão (Stellan Skarsgård), estão furiosos com sua expulsão, mas entendem que este é um estratagema político do imperador para minar a poderosa família Atreides com um posto colonial impossível.
A discussão entre os fãs mais acalorados sobre tópicos que não foram trabalhados no novo filme é completamente normal, visto que fomos contemplados apenas com a primeira parte do longa. Nesse sentido, somente quando a parte dois for lançada poderemos ter a plena noção e, nesse momento, julgar o universo pensado e executado pela equipe e pelo diretor. Dito isso, vale destacar a qualidade do trabalho já desenvolvido na narração inicial, muito forte, direta e que já estabelece a relação de risco em Arrakis, a opressão e toda a ameaça que envolve a história. De fato, a introdução do filme já é o suficiente para o espectador se dar conta do universo e da magnitude dos cenários, contando com uma fotografia fascinante que acompanha uma trilha sonora muito bem trabalhada frente à proposta da obra.
Ademais, é necessário salientar o trabalho com as vozes do filme. A importância de uma boa mixagem de som é fundamental para a experiência geral do público, e, frequentemente, a narrativa diminui propositalmente o ritmo, o que permite ao espectador vislumbrar maiores detalhes desse mundo. Nesse raciocínio, Villeneuve constrói bem a carga que envolve a caracterização de personagem, motivações e objetivos. A primeira parte de Duna, na realidade, não encerra um arco, pelo contrário, ela faz com que o espectador queira ver como a história vai acabar, por isso a parte dois será de extrema importância. Devido a esse fato, o diretor é muito feliz no desenvolvimento dos traços dos personagens, sabendo que alguns deles irão mudar completamente no futuro.
As passagens contemplativas que diminuem o ritmo de Duna, assim como as visões que são trabalhadas na história, não estão ali por acaso. Esses aspectos enfatizam o teor de imprevisibilidade, como na primeira cena de batalha, por exemplo, onde é explorado a ideia de risco, em que qualquer um pode morrer. Outro aspecto que cabe ser mencionado são as abordagens políticas que o longa carrega: tomando como exemplo o filme de 1984, dirigido por David Lynch, nota-se que ele se perde quase que completamente na caracterização política dessa história, deixando bastante a desejar. Entretanto, há também a simplificação dessas questões na nova adaptação, mas que se diferencia da produção de 1984 ao torná-la dinâmica, interessante e não restrita apenas ao nicho de pessoas que leram as obras, estabelecendo os tópicos essenciais dos conflitos, possíveis conspirações e a relação entre os povos. Assim, no que diz respeito à mitologia de Duna sobre organizações sociais, controle e poder, Villeneuve desenvolve muito bem a importância desses termos ao longo do filme.
Um destaque especial pode ser dado ao barão: sua presença se torna impactante em toda cena que aparece. De fato, sua participação foi pensada para causar tal sensação na história e, a cada tempo de tela, a condução da narrativa muda totalmente. Essas aparições contidas, com menos diálogos, acabam descartando inúmeras passagens do livro - especialmente sobre sua personalidade - se baseando apenas na utilização do poder imagético. Esse mérito recai diretamente sobre o ator Stellan Skarsgård que entrega uma atuação envolvente, encerrando sua participação com saldo positivo.
Quanto aos outros personagens, é premente analisar o de Timothée Chalamet: o ator apresenta um enorme potencial, sobretudo para as reviravoltas que serão apresentadas na segunda parte. Sua relação com o personagem Duncan, interpretado por Jason Momoa, é muito bem trabalhada. Ademais, Chani, interpretada por Zendaya, mesmo com sua participação contida, deixa o público esperando por mais informações sobre ela, mas que agora terá que esperar seu aprofundamento na segunda parte desse longa, onde será fundamental para a trama. Uma questão que talvez incomode aos que já conhecem a saga literária está na personagem de Lady Jessica, interpretada por Rebecca Ferguson: Villeneuve acaba mudando a personagem, extremamente forte e racional, apresentando-a um tanto descaracterizada, com uma certa fragilidade, na tentativa de recorrer ao melodrama, talvez. Entretanto, quem não conhece a história não terá problemas com isso, visto que diante da conjuntura montada, é muito bem feito.
Dito isso, tudo é muito grandioso em Duna, das paisagens áridas de Arrakis à caracterização dos personagens e o elenco estelar. Reunir Timothée Chalamet, Zendaya, Oscar Isaac, Josh Brolin, Jason Momoa e outros grandes atores foi uma grata surpresa, e, também, uma boa tentativa de conquistar um público que foge ao nicho do sci-fi. Mas seja como for, Duna traz um novo épico para a geração atual, com uma adaptação que enxerga a alma do livro e consegue transmitir os sentimentos que temos ao ler a obra. Como adaptação para o cinema, ouso dizer ser uma das mais bem feitas até então. Talvez, ter um fã na direção foi o que fez toda a diferença para captar a essência da trama e representá-la da maneira como deve ser.
Nota do crítico: 4.0/5.0 (Ótimo)