É fácil cair nos encantos da comédia de terror de 2016 The Love Witch, de Anna Biller. O filme é rodado em uma paleta chamativa para combinar com o Technicolor dos anos 60, baseando-se numa estética que é como o sonho de um amante do vintage se tornando realidade.
A obra nos apresenta inicialmente um carro antigo cruzando uma estrada isolada da Califórnia. A mulher no banco do motorista está vestida de vermelho, unhas combinando, uma maquiagem azulada sessentista e um cigarro apagado. Uma narração começa a contar a história de maus-tratos que sofrera nas mãos de um homem que amou. Ao acender o cigarro, ela inadvertidamente mexe no conteúdo de sua bolsa, revelando uma única carta de tarô — o Três de Espadas: um prenúncio de tristeza e desgosto.
Nesse sentido, já é notável logo nos minutos iniciais que a estrutura narrativa da obra está repleta de presságios sobre a natureza dos relacionamentos entre homens e mulheres. O público então conhece Elaine (Samantha Robinson), uma bruxa obcecada pelo ideal de amor cortês e em busca de devoção eterna, enquanto ela se estabelece em uma pequena cidade no norte da Califórnia com a intenção de reconstruir sua vida após o casamento abusivo e a morte misteriosa do ex marido.
No que diz respeito aos clichês — fórmulas cinematográficas já desgastadas e conhecidas pelo público — e estereótipos acerca do feminino, a obra Opinião Pública, lançada em 1922, Lippmann (2008, p. 91) diz que recorremos aos estereótipos porque seria cansativo e provavelmente impossível examinar todas as coisas de uma maneira nova, sem vinculá-las a generalizações. Nesse sentido, a diretora faz uso do retrato hipercaricaturizado da única coisa para a qual as mulheres eram consideradas boas: sexo e limpeza – dos arquétipos dos anos 60 e 70 (dos quais ela pega emprestado muito pastiche) de dona de casa. Entretanto, como forma de utilizar tais clichês a seu favor, Biller retrata Elaine como uma mulher que está preocupada em receber seu próprio prazer, tendo consciência de ser uma emoção efêmera, do que dar aos outros. E é dessa maneira que Biller também constrói uma reflexão em relação àquele tropo reiterado sobre as mulheres: elas são súcubos famintas por sexo enviadas para distrair e destruir. Dessa forma, a cineasta acaba por realizar um feito importante: se aproveitar dos estereótipos – trabalhando-os e desenvolvendo-os principalmente no roteiro – sem acabar se tornando um, inconscientemente.
A cineasta por trás do longa, Anna Biller, é uma escritora e diretora que cria filmes altamente visuais focados na narrativa feminina , sempre investindo fortemente na direção de arte como fio condutor de suas histórias. Seu primeiro longa, Viva (2007), foi exibido em festivais de cinema em todo o mundo e ganhou status de aclamação. Entretanto, seu segundo longa, tema do artigo em questão, foi aclamado por seu elaborado estilo e temas feministas, conquistando o circuito internacional com louvor em festivais como International Film Festival Rotterdam e Moscow International Film Festival.
Na obra de crítica de cinema de Laura Mulvey, Prazer Visual e o Cinema Narrativo, ela cunhou o termo “Male Gaze” para explicar a perspectiva cinematográfica predominantemente
centrada no homem. Dentro dessa perspectiva, as mulheres no cinema e em outras artes são retratadas principalmente como objetos sexuais para o consumo do homem heterossexual, com pouca caracterização própria. Embora esse termo esteja em uso desde a década de 1970, houve um ressurgimento de sua popularidade na última década, juntamente com o advento do “olhar feminino”, que deu origem a uma nova onda de diretoras que ansiavam por esse panorama. Quando essa visão é aplicada, as mulheres são menos sexualizadas e se tornam contadoras de histórias independente. Mas quais são os efeitos causados por cineastas que decidem cruzar esse olhar Feminino ao explorar a sexualidade, o desejo e o amor?
Nesse sentido, o trauma da protagonista Elaine está intimamente ligado ao desejo que a move: ser amada por um homem. Isso é explorado por meio da natureza dupla de seu mecanismo de autopreservação: ela internaliza o ideal heteropatriarcal clássico que coloca o fardo da mudança para agradar o parceiro nos ombros das mulheres e utiliza como arma sua aparência física e sexualidade.
Ela manuseia ambos para jogar com o arquétipo da mulher “femme fatale’”. No entanto, a cineasta não vincula a auto-objetivação de Elaine à falta de individualidade. Embora ela seja parcialmente motivada por esse trauma, Elaine também é uma predadora: ela persegue os homens com uma necessidade voraz até que eles não possam mais fornecer a adoração da qual ela preza.
O seu modo de agir diz muito sobre a sua necessidade de sobrevivência como mulher em um mundo construído para homens, mas também funcionam como ferramentas para ir incessantemente atrás do que quer. Mas a submissão de Elaine é egoísta — ela apenas mima um homem, cozinha para ele ou faz sexo com ele porque vê essas atividades como trampolins para alcançar a reciprocidade, a fim de garantir um relacionamento em que receba o afeto de seu parceiro. Nesse raciocínio, a teia de relacionamentos de Elaine com amantes do sexo masculino ilustra o argumento principal do livro de Silvia Federici, Caliban e a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva: “O sexo é uma atividade social e historicamente determinada, investida por diversos interesses e relações de poder.” (FEDERICI; SILVIA, 2004, p.34 – tradução nossa).
Por outro lado, as visões um tanto antiquadas de Elaine sobre a feminilidade são utilizadas a fim de brincar com os prejulgamentos típicos de obras desse gênero, principalmente devido a indução à bruxaria. A narração em off revela ao espectador que suas experiências com a magia começaram em San Francisco junto a uma seita de bruxas que, embora pregassem uma doutrina de amor livre e magia sexual, as mulheres seguiam padrões diferentes dos homens. Então a protagonista, que rotineiramente era comparada às deusas e outros clichês sobre sua natureza “selvagem” e “indomável”, passa a utilizar seu corpo, roupas e maquiagem para atrair os homens, mas também para trazer alegria a si mesma.
Dessa forma, descrever Elaine apenas como um ícone feminista dificulta outras interpretações do enredo. Ao mergulhar no filme e deixar de lado sua narrativa superficial, consegue-se notar que, para além do uso de clichês, Anna Biller transforma estereótipos em excelentes análises deles mesmos, através da ironia contida no roteiro. Ademais, este filme pode não ter a intenção de ser lido dessa maneira, mas uma vez considerado, é difícil ignorar que o longa aborda os horrores das repercussões mentais de relacionamentos abusivos.
Ao final de tudo, o assassinato consumado por Elaine de seu amante, então, é um renascimento sombrio e sangrento da protagonista. Essa analogia faz sentido — o assassinato marca o momento em que Elaine deixa de ser um objeto de desejo e passa a ser um sujeito ativo, sem necessidade de subterfúgios ou desonestidade. Essa é a moral do conto de fadas sobre a mulher perfeita que Biller tenta transgredir. O ato culminante de violência realizado por Elaine é um momento de fuga — ela não precisa mais ser impecável. Ela não é morta, mas mata. O ciclo está quebrado.
Filmes como The Love Witch seguem importantes tanto do ponto de vista estilístico quanto feminista. Anna Biller integra-se firmemente em um espaço predominantemente masculino enquanto rejeita os ideais em torno dos quais construíram seus filmes por décadas. Biller entende que a representatividade feminina precisa ir além da inclusão. Por isso, perspectiva e profundidade são essenciais e, às vezes, o tipo “errado” de mulher é necessário para ilustrar como podem ser prejudiciais as visões concebidas pelos homens sobre as mulheres, perpetuados de tal forma a ser normalizado. Cineastas feministas como Anna Biller são distintas em estilo e estrutura narrativa, permitindo a construção de obras verdadeiramente únicas como The Love Witch, no século XXI.
Nota do Crítico: 4.5/5.0 (Excelente)