De acordo com o dicionário da língua portuguesa, a palavra “frenético” significa aquilo que atinge o estado supremo de exaltação. Essa talvez seja a melhor e mais certeira palavra para descrever a estética do cineasta Baz Luhrmann ao longo de sua carreira. Em 2001, uma de suas produções mais autênticas foi lançada em Hollywood, Moulin Rouge – Amor em Vermelho. Nela, ele mistura gerações para formar um dos grandes e mais extravagantes musicais da indústria. Agora, em 2022, o mesmo diretor apaixonado traz a história do rock para as telas, que não pode ser contada sem o rei Elvis Presley. E a história de Elvis não pode ser contada sem a influência negra em sua formação musical. Assim, essa combinação arrebatadora chegou ao cinema, no longa "Elvis".
O artista tornou-se um símbolo por suas performances sensuais – algo que, à época, era visto com maus olhos pelo lado conservador da sociedade. O filme, que vem cativando o público e a crítica, é uma carta de amor recheada de cores que, apesar dos problemas estruturais, consegue emocionar principalmente por uma performance surpreendente de Austin Butler no papel principal e por Tom Hanks numa irreconhecível entrega como o Coronel Tom Parker, misterioso empresário que descobriu o Rei do Rock.
A história mergulha na dinâmica complexa entre Presley e Parker ao longo de 20 anos, desde a ascensão de Presley à fama até seu estrelato sem precedentes, tendo como pano de fundo a paisagem cultural em evolução e a perda da inocência na América. No centro dessa jornada está uma das pessoas mais importantes e influentes na vida de Elvis, Priscilla Presley (Olivia DeJonge) e sua filha, Lisa Marie.
É impossível começarmos esse texto sem citar o empenho deslumbrante que Austin Butler entrega ao público. O ator é o responsável por nunca nos deixar tirar os olhos da tela (seja na voz ou nos gestos), numa atuação mais intensa do que a que rendeu o Oscar a Rami Malek interpretando Freddie Mercury. Butler está no páreo para ganhar muitos prêmios por encarnar brilhantemente a personalidade do astro, obviamente abusando do exagero - marca registrada do cineasta Baz Luhrmann. Desde o jeito de rebolar os quadris até o tom de voz, passando pela maneira de falar com a boca semi aberta olhando para baixo, tudo parece milimetricamente estudado. Isso, sem dúvidas, é um grande mérito de Austin que fez preparação física e vocal há cerca de um ano antes das gravações começarem. Nesse sentido, a caracterização é tão imersiva que, somado ao efeito granulado de alguns trechos do filme simulando uma filmagem antiga, pode fazer com que o espectador não tenha certeza se está vendo o seu intérprete ou o verdadeiro Elvis. E, acreditem, em algumas partes do longa isso acontece!
Já Tom Parker, por sua vez, é estabelecido como um narrador não confiável. Um empresário ganancioso, que busca alimentar uma energia já em combustão de Elvis com remédios para que a agenda fosse cumprida, extraindo tudo o que consegue do cantor para sustentar seu vício em jogo. E o faz até a última gota de suor do artista. Literalmente. Através dessa figura cercada de polêmicas, Tom Hanks dá o tom exato do personagem, apresentando o seu ponto de vista de uma personalidade que termina sua vida sozinho vagando pelos cassinos de Las Vegas. Além dos dois protagonistas, são introduzidas Priscilla Presley, a esposa do cantor, e sua filha Lisa Marie, que apesar de serem pessoas fundamentais na história - principalmente por conta do relacionamento controverso entre Elvis e Priscilla - não ganham muito espaço no longa.
Outro ponto de destaque é o não embranquecimento da história. O cantor viveu a vida toda rodeado de pessoas negras, e isso é retratado no filme que mostra, inclusive, a relação de Elvis e B.B King (Kelvin Harrison) que, apesar de pouco explorada, não foi deixada totalmente de lado. Foi na igreja, por exemplo, que ele aprendeu a dançar e rebolar, mais tarde se tornando sua marca registrada. Dessa forma, ao misturar soul, gospel e folk, ele conquistou os Estados Unidos. Essa dinâmica é desenvolvida durante uma conversa em que Elvis comenta com B.B King que estão querendo lhe prender devido ao seu jeito de dançar. O amigo então responde dizendo que Elvis é branco e pode fazer o que quiser, enquanto ele, sendo negro, pode ser preso apenas por atravessar a rua.
Diferente de uma série, um filme dispõe de pouco tempo para mostrar o seu valor. Então para fazer com que a vida do biografado se adeque a linguagem cinematográfica, o longa necessita de recortes a fim de condensar acontecimentos. Por isso, à primeira vista, a montagem do filme e a noção de tempo ao longo da narrativa podem causar grande estranheza e até confusão, justamente pelo ritmo se propor a ser delirante. A desconstrução é feita de maneira direta, quebrando cronologias e fragmentando percepções lineares. Entretanto, tal estranheza pode se dissipar à medida que percebemos o propósito do diretor em aplicar a energia do protagonista e a tormenta de seus pensamentos como fio condutor do ritmo da obra.
O longa, apesar de 2h40 de duração, consegue manter a dinâmica graças ao seu diretor, que selecionou precisamente o material necessário para permanecer no corte final, deixando, é claro, muito material de fora, conteúdo que poderia aprofundar algumas questões importantes do longa, como o psicológico de Elvis e a sua própria carreira, que em alguns momentos é passada brevemente e sem muitas explicações. No geral, o desenvolvimento da obra foi construído de forma ideal para o que tinha a dizer e mantém uma de suas características principais: a autenticidade. Falando nela, outro ponto muito positivo do longa é a forma como as músicas do astro são apresentadas: além dos clássicos, Baz opta por renovar algumas delas através de mixagens e músicas inéditas - aliado a uma fotografia hipnotizante - tornando cada cena ainda mais magnética.
O filme encerra com a música “Unchained Melody”, que em todo o seu significado e reprodução no último show de Elvis em 1977, dias antes de sua morte, entrega a eternidade que ele desejava ter. No longa, o astro lamenta por estar perto dos quarenta anos e nunca ter feito nada inesquecível, e por isso não seria lembrado. O que Presley não imaginava é que 45 anos após a sua morte, continuaria sendo uma das principais vozes do mundo. “Elvis” enaltece a figura do artista com o devido respeito e destaca o que é preciso, como mostrar que a raiz do rock - e de quase toda a música pop americana - é negra. Desse modo, Baz Luhrmann entrega ao público aquilo que ele faz de melhor: um show que atinge o estado supremo de exaltação. Uma experiência freneticamente extravagante.