O texto a seguir é uma crítica da nova adaptação de Amor, Sublime, Amor (2021) nas mãos do consagrado diretor Steven Spielberg.
Independente da influência e prestígio de um diretor - até mesmo no caso de Steven Spielberg - refazer clássicos do cinema que já estão tão consolidados quanto “Amor, sublime amor” não é uma tarefa fácil. Retirado da peça musical de Stephen Sondheim, é quase impossível assistir ao remake de “West Side Story” sem traçar paralelos com o laureado filme de 1961. Entretanto, apesar de ser a primeira empreitada do diretor em um filme musical, Steven Spielberg é Steven Spielberg, um dos diretores fundadores da Hollywood moderna e fã declarado da obra original. Nesse sentido, poderíamos esperar que o cineasta arregaçaria as mangas para trabalhar em sua própria versão dessa obra atemporal, entregando um longa que não só respeita o seu antecessor como, arriscaria dizer, consegue ser superior em diversos aspectos e aberto a atualizações.
A versão urbana de Romeu e Julieta é passada nos anos 50 em Nova York e a história todos já conhecem: com duas gangues rivais, os Jets, formada por americanos brancos imigrantes de europeus e os Sharks, formadas de imigrantes porto-riquenhos de primeira geração, disputando território no que hoje é conhecido como o Upper West Side de Manhattan, com Tony, ex-líder dos Jets apaixonando-se perdidamente por María, irmã do líder dos Sharks.
O longa de 1961 quebrou as convenções dos grandes musicais Hollywoodianos, criando um realismo mágico urbano nunca presenciado, capturando, até hoje, o imaginário popular. Diante desse contexto, o que Spielberg propõe é se aprofundar e dar mais realismo a essa rivalidade entre as gangues e como o ser humano carrega consigo a intolerância, mesmo sendo vítima da mesma moeda. Nesse sentido, retrata um sistema que quer expulsá-los dali, a fim de reurbanizar a ilha de Manhattan e entregá-la aos mais ricos, de forma que os antigos moradores acabem virando meros serviçais. Essa abordagem social é o coração da nova adaptação, iniciando com enquadramentos aéreos estonteantes e que já retratam muito bem a demolição dos cortiços para a construção de grandes projetos, em um processo de gentrificação mais atual do que nunca.
Esse contexto macro abre mais espaço também ao contexto micro, com a dinâmica entre os membros de ambos os grupos, visto que na nova adaptação existe uma tensão muito maior na caracterização do contexto. Assim, eles são retratados brilhantemente pela equipe artística do longa através do uso de cores: os figurinos dos americanos Jets são sempre representados em cores frias, enquanto que os porto-riquenhos Sharks, apresentam sempre figurinos em cores quentes. Mas, ainda que o desenvolvimento dos personagens seja marcado pela hostilidade e a violência o tempo inteiro, ambos os grupos sabem que o futuro é incerto. Nesse contexto, a fotografia de West Side Story trata de abraçar essa situação, contando sempre com a ruptura do cenário e a fumaça como a ameaça quase invisível de que qualquer disputa será contestável. Assim, o trabalho de ambientação criado pela direção de arte é magnífico, inserindo o espectador em uma Nova York dos anos 50 muito bem recriada, prezando pelos mínimos detalhes.
Existem novas passagens que dão ênfase para personagens que não eram vistos como prioridade, seja no musical ou na versão de 61. Na nova adaptação, Spielberg acaba expandindo diálogos, por exemplo, apresentando várias conversas em língua espanhola que não são apresentadas com legenda, configurando uma escolha criativa muito sagaz do diretor, enaltecendo a força cultural do país retratado. Em termos de atuação, vale destacar dois personagens que, como dito anteriormente, não haviam sido muito desenvolvidos na obra original, mas que agora ganham muita relevância: María, vivida pela estreante Rachel Zegler, e Anita, por Ariana DeBose. Zegler entrega uma grandiosa interpretação, sendo impossível não comparar com a atuação de Natalie Wood, porém, a abordagem de Spielberg - arrisco dizer - é superior à personagem do filme de 61. A nova María é envolvente do início ao fim, cuja inocência é sutilmente transmitida apenas no olhar e fundamental para a condução da narrativa. A química entre a atriz e Ansel Elgort como Tony está muito presente, mas Rachel, de fato, está em outro patamar.
Ademais, Debrose como Anita é igualmente estupenda, uma personagem que comanda a atenção em qualquer cena em que aparece, fazendo um ótimo par com David Alvarez, que vive brilhantemente Bernardo, irmão de María. Outro destaque é, é claro, ninguém mais ninguém menos que Rita Moreno, a Anita do filme original, que na nova versão vive a mentora de Tony. Ao contrário do que se pode pensar, ela não foi escalada como mera homenagem, pelo contrário, Moreno é essencial, com presença constante e com direito a um número musical próprio, carregado de sentimentos.
O ritmo proposto pelo diretor também é algo admirável: ao se tratar de um filme com duas horas e meia de duração, seria fácil para outro realizador acabar perdendo a mão, tornando o filme extremamente cansativo. Entretanto, o modo como o cineasta conduz a história atrai o espectador de forma natural, tornando “Amor, sublime amor”, um filme cadenciado na medida certa. Além disso, os arranjos musicais também são fundamentais para o ritmo proposto, ao mesmo tempo respeita e altera as composições originais, mexendo no tempo e incorporando elementos tanto da adaptação de 1961 quanto inéditos para passar outro tipo de vigor às canções, diversas delas capturadas ao vivo.
Dessa forma, “Amor, sublime amor” de 2021 surpreende ao trazer elementos muito maduros aliados a ares clássicos de uma das histórias de amor mais conhecidas da Broadway. Nesse sentido, seja pelas belas atuações, o lindo uso das sombras como parte fundamental do enredo, ou pelo excelente trabalho de Steven Spielberg, não podemos negar que mesmo clássicos intocáveis podem ser revisitados e, contra todas as probabilidades, aperfeiçoados. O cineasta entrega uma obra moderna e grandiosa logo nos momentos finais do ano: uma versão vibrante e cheia de personalidade ao ponto de se estabelecer como algo único. Um sublime presente aos fãs de musicais, ou melhor, de boas histórias.